Análises

Império dos Ruminantes: a conquista do mundo pelo boi

Bovinos trocaram a liberdade pelo sucesso ao aceitar a domesticação, mas também se tornaram deuses e fizeram a cabeça das pessoas

Fabio Olmos ·
27 de novembro de 2017 · 6 anos atrás
Não tão pop quanto dizem. Foto: Vinícius Mendonça - Ascom/Ibama.
Não tão pop quanto dizem. Foto: Vinícius Mendonça – Ascom/Ibama.

O lado moderno se deixa representar, por ação ou omissão, pelos que defendem essa marcha da insensatez…. Quando se vai a campo, encontra-se o lado moderno. Mas os que falam pelo setor têm preferido o atraso. A agenda do futuro é outra”.

Míriam Leitão, sobre o do agronegócio brasileiro em História do Futuro

Por qualquer medida as vacas e seus maridos, os touros, formam o grupo de animais de grande porte mais bem-sucedido do planeta. Enquanto as populações de elefantes, rinocerontes, gaurs, búfalos, girafas e outros grandes mamíferos e as suas áreas de ocupação continuam a colapsar, vacas, carneiros, cabras e camelos ruminantes que celebraram o pacto faustiano da domesticação formam uma horda de mais de 3,6 bilhões de indivíduos.

A maioria corresponde a vacas, touros e bois (touros que perderam seus documentos), que pesam muito sobre a Terra. Enquanto os 7,2 bilhões de humanos do planeta pesam umas 360 milhões de toneladas, os 1,7 bilhões de bovinos (219 milhões no Brasil) pesam uns 850 milhões de toneladas.

Vivemos no planeta das vacas. Bovinos que moldam o destino de países e a vida de sociedades.

Os vacuns contemporâneos vêm de antiga e gloriosa linhagem de bovinos que surgiu há pelo menos 20 milhões de anos e conviveu com nossos ancestrais mais remotos. Os Bovini incluem formas extintas como os impressionantes Pelorovis, que podem ter sobrevivido no norte da África até 4 mil anos atrás, o kouprey (Bos sauveli), caçado até a extinção no século 20, e os ainda vivos bisões (Bison spp.,) mithun (Bos frontalis), gaurs (B. gaurus), yaks (B. grunniens) e batengs (B. javanicus).

Uma característica das espécies ainda viventes é que podem produzir híbridos férteis entre si. Isso torna sua história evolutiva tanto complicada quanto interessante. Por exemplo, o bisão europeu ou wisent (Bison bonasus) é resultado da hibridação entre o auroque (já falarei dele) e o hoje extinto bisão-das-estepes (Bison priscus) há pelo menos 120 mil anos.

Há mais de 330 mil anos atrás, talvez até 2 milhões de anos, a linhagem vacum ancestral se separou em dois ramos. Por razões provavelmente ligadas a flutuações climáticas, as vacas ancestrais – provavelmente o Boslati frons indiano – foram isoladas em ambientes sob pressões evolutivas distintas. E a partir daí percorreram caminhos diferentes.

Os auroques ou uros (Bos primigenius) evoluíram na vasta área entre o que é hoje a Europa e o norte da África (do Marrocos ao Egito) e a Mesopotâmia e Sibéria. Estes bovinos ancestrais viviam em um mosaico de florestas e áreas abertas que seu pastejo, junto com o de outros grandes herbívoros, ajudava a manter.

Toro de corrida, superficialmente similar aos auroques. Monfrague, Espanha.
Toro de corrida, superficialmente similar aos auroques. Monfrague, Espanha.

Grandes mamíferos pastadores são engenheiros de ecossistemas que ditam a composição e sucessão da vegetação, regimes de fogo, ciclagem de nutrientes e, também, como se organizam guildas de animais, de besouros rola-bosta a necrófagos. Sua extinção muda brutalmente como ecossistemas funcionam, como vemos no  Cerrado e Pantanal de hoje, e justifica experimentos para restaurar aquelas interações. Há evidências de que a “megafauna introduzida”, como cavalos e jegues ferais, pode restaurar alguns processos, o que já é utilizado em projetos de conservação em outros países.

Auroques

Quando digo grandes herbívoros, não estou exagerando. Os touros auroques chegavam a 1,75-1,8 m na altura dos ombros e perto de 1 tonelada (as vacas são ¼ menores). Eram negros com uma faixa café com leite ao longo do dorso e no alto da cabeça, possuindo poderosos chifres que se abriam para as laterais da cabeça antes de se curvarem para a frente.

A razão de sabermos disso é que os auroques viveram ao nosso lado por muito tempo. Retratados em pinturas rupestres na Espanha e França e relevos em palácios no atual Iraque, os enormes auroques foram descritos como muito agressivos por escritores da Mesopotâmia, Grécia e Roma. Vencer os “touros selvagens” era façanha-padrão para caras machos como Gilgamesh, o mítico rei de Ur, e Senaquerib, o rei-naturalista assírio. E não só eles.

Júlio César encontrou os auroques (descritos como “pouco menores que um elefante”) durante sua invasão da atual Alemanha e informa que as feras não podiam ser domadas e não poupavam nem homens nem outros animais. O que animava os povos tradicionais da região a mostrar sua macheza caçando os auroques e enfeitando seus lares com os chifres de suas presas.

Repetindo o que já havia acontecido com tantas espécies da megafauna, a longa guerra de atrito entre humanos e auroques terminou com a extinção destes. O último auroque, uma vaca idosa, morreu em Jaktorów, na Polônia, em 1627.

Os reis poloneses até tentaram manter os últimos animais através de um projeto de conservação de base comunitária, antecessor dos que hoje são tão populares em terras comunais e mesmo UCs de uso integral. Não funcionou por razões que são familiares.

Toro de corrida, versão andina. Antisana, Equador Fig 3 – Vida de gado. Galanga, Angola.
Toro de corrida, versão andina. Antisana, Equador.

Os auroques desta última população eram uma caça valiosa, privilégio de apenas parte da nobreza. A reserva de Jaktorów foi estabelecida “para o bem-estar dos auroques” e, como nas reservas ou parques de caça atuais, havia um corpo de gamekeepers. Contratados dentre a população local, tinham bons salários e privilégios especiais com o objetivo de assegurar o bem-estar dos auroques, incluindo fornecer feno durante o inverno (produzido pelos aldeões) e conduzi-los de volta à floresta caso entrassem em alguma plantação.

Ao mesmo tempo foi estabelecido um sistema onde aldeões de diferentes vilas próximas tinham autorizações especiais para fazer o que hoje chamamos de manejo sustentável de recursos florestais, com a ideia de conciliar conservação e estilos de vida tradicionais.

Conservação gerando emprego e renda. No papel. Na prática, o tal manejo sustentável resultou na degradação da floresta e o que deveria ser uma área manejada para os auroques era invadida por grande número de pessoas com seu gado, que consumiam as mesmas pastagens da qual os animais selvagens dependiam, especialmente nos invernos rigorosos.

O resultado de deixar as coisas nas mãos de privilegiados locais em um ambiente de corrupção foi a extinção dos últimos auroques. Soa familiar? A importância simbólica dos touros permeia boa parte das culturas que tiveram contato com os auroques, evidente desde as pinturas nas cavernas da Espanha e França. Muitas religiões tiveram bovinos como símbolos e sacrifícios, de ÇatalHüyük (uma das primeiríssimas cidades, datando de 7 mil AC), passando pelo culto ao Ápis egípcio e a representação do evangelista cristão Lucas como um boi sacrificial. As touradas espanholas e portuguesas são ecos desse passado.

A extinção dos auroques deixou um vazio cultural e ecológico. Não é de estranhar que tenham tentado preenchê-lo.

Uma das tentativas mais peculiares foi a dos irmãos Heins e Lutz Heck durante os 1920-30. Diretores dos zoos de Munique e Berlin, os manos conseguiram criar o hoje chamado Gado Heck quando a República de Weimer terminava e o nazismo ascendia.

Retinta. Trujillo, Espanha.
Vida de Gado. Galanga, Angola.

Filiados ao partido, cujo programa nacionalista incluía uma visão nostálgica da Germânia, onde Júlio César encontrou os auroques, seu projeto foi apoiado pela cúpula do partidão e manadas de gado Heck introduzidas na Polônia e Alemanha, onde foram mortas no fim da guerra.

O nacionalismo é um daqueles fenômenos para-religiosos que cria gado humano. Há nuances. O nacionalismo dos nacionalistas-socialistas-autoritários da Alemanha nazista valorizou a natureza de seu país, enquanto, hoje, o nacionalismo dos socialistas-nacionalistas-autoritários do Brasil investe na destruição da natureza de nosso país. Como vimos na mutilação de nosso Código Florestal.

O gado Heck sobreviveu à Segunda Guerra e hoje pode ser encontrado em muitas áreas protegidas pela Europa, onde é usado em programas de rewilding e restauração ecológica. Mas sua origem torna seu uso impensável em países como a Polônia, marcados pelo horror nazista.

Por isso e pelo bicho também não ser igual ao auroque original (é pequeno, com 1,4 m no dorso e 600 kg, entre outros defeitos), foram criados programas de reprodução seletiva com o objetivo de criar algo ainda mais parecido com os auroques, o chamado Gado Taurus. Um dos projetos, ligado à iniciativa Rewilding Europe é a Operação Tauros, que cogita mesmo o uso da edição genética para recriar os auroques.

Animais produzidos por esses projetos – junto com cavalos selvagens, cervos e bisões – podem ser vistos em parques nacionais e outras UCs europeias onde estão restaurando processos ecológicos, da forma como é possível. Incluindo o retorno de predadores e carniceiros há muito extintos.

Domesticação

Uns 10-11 mil anos atrás um número inferior a 80 auroques foi domesticado no que é hoje o sudeste da Turquia e norte do Iraque, ou Kurdistão. Um segundo centro de domesticação, menos compreendido, parece ter se localizado no norte da África, a região do Egito um ponto de encontro das duas linhagens. Devem existir outros.

Acompanhando as migrações humanas, o agora domesticado gado adentrou regiões ainda habitadas pelos auroques e há evidências genéticas de que, na Europa, vacas mansas e auroques selvagens produziram bezerros em número suficiente para deixar marcas nos genomas de algumas raças.

Bantengs e híbridos com zebus. Sampit, Indonesia.
Retinta. Trujillo, Espanha.

Retinta. Trujillo, Espanha

Como é padrão, a domesticação visou reduzir os gigantescos auroques a um tamanho mais manejável e diminuir seus cérebros. As feras descritas por Júlio César se tornaram vacas de presépio, os Bos taurus de hoje, com mais de 700 raças de gado “taurino” existentes.

Enquanto os auroques evoluíram nas florestas e prados temperados da Eurásia e norte da África, o outro ramo da família evoluiu isolado no que é hoje a Índia e Paquistão, que talvez sejam a terra ancestral de todos os Bos. Ali surgiu o Bos namadicus, bovino ancestral que parece ter tido seu centro de distribuição no vale do rio Indo.

Em média menor que os auroques do norte, os namadicus eram adaptados a um clima quente, sendo caracterizados por ter um metabolismo mais baixo, armazenar gordura em uma corcova e ter uma papada proeminente que funciona como um radiador, além de muitas diferenças no esqueleto e crânio.

Sabemos disso não só pelos fósseis e outros restos, ou as representações na arte de civilizações com 5 mil anos como a de Harappa e Mohenjo Daro. Como aconteceu com os auroques, os namadicus foram domesticados e se tornaram os zebus, ou Bos indicus, que vemos hoje.

Esse processo de domesticação parece ter se iniciado há uns 9 mil anos no atual Baluchistão (parte do Paquistão), junto com a introdução da agricultura a partir do Oriente Médio, com evidências definitivas de domesticação já há 8 mil anos. Evidências genéticas sugerem que houve um segundo centro de domesticação no sul da Índia.

Uma vez domesticados, taurinos e zebuínos foram levados por seus mestres para todo o mundo. Zebus aparecem no sul da China há 4.500 anos, enquanto o gado taurino já estava presente na Ásia Central e norte da China há 6-7 mil anos.

Essa perambulação vacum resultou no inevitável encontro das duas espécies. Após centenas de milhares de anos de evolução por caminhos diferentes, Bos primigenius / taurus e Bos namadicus / indicus se encontraram em algum ponto entre o Egito e Somália e, como sapiens e neandertais ao se encontrarem na Europa, as duas espécies produziram híbridos férteis que são os ancestrais das muitas raças de gado africano ou Sanga.

Bantengs e híbridos com zebus. Sampit, Indonesia.
Bantengs e híbridos com zebus. Sampit, Indonesia.

Mistura repetida em muitos outros lugares e com outras espécies.

Hoje existem não só híbridos entre zebus e taurinos, mas entre estes e bisões, bantengs e yaks.

A domesticação não apenas reuniu espécies até então isoladas. Ela é seleção artificial, onde a vontade humana determina quem irá fazer bezerrinhos com quem. O resultado é o atual caleidoscópio de diversidade bovina.

O poder do Bos

Mas se humanos transformaram as vacas, as vacas também transformaram os humanos e suas sociedades. Como a influência cultural chegando ao ponto de fetiche sugere, touros e vacas fizeram a cabeça das pessoas. Mais do que muitos podem admitir.

Jared Diamond, em Armas, Germes e Aço (todo estudante de humanas e biológicas deveria ler) conta como a domesticação de vacas, ovelhas, porcos, etc deu aos seus mestres um armamento microbiológico que ditou a História.

Todo bicho tem micróbios associados e as vacas deram aos europeus uma das armas decisivas para a conquista das Américas. Um vírus que causa ulcerações desconfortáveis em seus hospedeiros vacuns sofreu mutações que lhe permitiram contaminar hospedeiros humanos com variados graus de letalidade. Assim nasceu a varíola.

A varíola produziu epidemias medonhas em toda a Europa e Ásia ao longo de milhares de anos – da Praga de Atenas às Pragas de Antonino e Cipriano. Porém, pela época dos Descobrimentos a população europeia tinha uma porcentagem considerável de pessoas com imunidade ou resistência. E levaram o vírus para as Américas.

Em contato com populações humanas sem defesas imunológicas, o vírus se comportou como um político posto pelo governo na direção de uma estatal, destruindo seus hospedeiros. A varíola foi decisiva para a derrocada dos impérios Inca e Azteca. Junto com a gripe e outras doenças de origem similar, foi responsável pelo colapso de populações pré-colombianas e pela conquista europeia.

A conquista das Américas

Nelore. Vila Bela da Santíssima Trindade, Mato Grosso.
Nelore. Vila Bela da Santíssima Trindade, Mato Grosso.

O que abriu novos territórios para as vacas, começando pelas taurinas europeias. Muito cedo começou uma invasão biológica que deu origem a culturas vaqueiras, como a Civilização do Couro do nordeste do Brasil – associada ao cangaço e guerras locais como Canudos, e a cultura Gaúcha do Rio Grande do Sul, que inclui a Guerra dos Farrapos no seu curriculum.

Gado não é só capital que pode ser usado para comprar uma esposa ou apartamento. Gado é um bem que caminha por conta própria e muito provavelmente foi o primeiro capital objeto de roubo em larga escala.

Tradição orgulhosamente mantida por pencas de grupos tradicionais que a tem como grande passatempo e razão de pequenas guerras crônicas que podem ficar muito sérias conforme cresce o número de pessoas e de AK-47s. Tradição que gera culturas onde a agressão masculina é um componente importante dos povos vaqueiros.

A digital de violência na cultura de povos vaqueiros é visível desde os hunos e mongóis, passando pelos cowboys do Velho Oeste. E pelos reis do gado que abriram suas fazendas na base da bala em tantos pontos do Brasil.

Steven Pinker em Tábula Rasa (todo estudante de humanas e biológicas deveria ler) nota que culturas de violência surgem onde as pessoas estão além do alcance do Leviatã do Estado e possuem bens que podem ser facilmente roubados. Ou seja, a falta de Estado, que influencia a cultura das periferias dominadas pelo tráfico de drogas, também está por trás da cultura de sociedades nas fronteiras, onde o gado podia ser roubado por quem tivesse mais guerreiros e armas.

Nesse ambiente, os homens cultivam uma atitude beligerante que responde com violência não apenas às tentativas de tomarem seus bens, mas às ações que possam demonstrar sua fraqueza. É a cultura do puxar a faca a qualquer provocação e mostrar que com homens de verdade não se brinca. Dothrakis e vaqueiros variados compartilham a mesma raiz.

Estudos sugerem que a cultura de violência permanece nos descendentes de culturas vaqueiras muito tempo depois destes terem mudado de vida e se tornarem urbanoides, refletindo-se em coisas como porte de armas e apoio a soluções violentas para problemas sociais. Que o leitor avalie se isso afeta um Brasil onde ocorrem 61 mil assassinatos por ano.

Esta cultura também explica a convicção dos Reis do Gado no seu direito divino de ditar regras a todos e para apelar à violência. Não é estranho que achem a escravidão como algo natural e considerem normal invadir terras públicas e transformá-las em pastos. Não há surpresa quando se olham terras invadidas dentro de UCs, do Jamanxim à Serra de Ricardo Franco. Em Brasília, esses crimes são apoiados pela bancada ruralista.

Heranças da cultura vaqueira.

No Pampa dá certo

Araguaína, Tocantins.
Araguaína, Tocantins.

Enquanto o gado Heck e os Taurus são usados em projetos de conservação na Europa, o gado doméstico pode ser uma ferramenta de conservação do nosso Pampa.

Nos Pampas do sul do Brasil, Uruguai e Argentina, o gado (com cavalos europeus) ocupou o nicho ecológico deixado vago pela extinção da megafauna nativa (mastodontes, cavalos americanos, lhamas, megatérios, macrauquênias, etc.) pelos povos pré-colombianos.

Relatos históricos mostram o sucesso desta introdução, que moldou a cultura e a economia do Pampa, enquanto a ciência atual mostra como, bem manejada, a pecuária pode ter sucesso em conciliar a conservação da biodiversidade com produção naquele ecossistema.

Há vários experimentos, das savanas africanas às pradarias americanas, de como a pecuária pode ser manejada para conservar a biodiversidade e gerar dinheiro, e esse é um campo de pesquisas que deveria ser melhor explorado.

Um de meus projetos de conservação favoritos é a Alianza del Pastizal, da Birdlife International, conduzido na Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil, aqui gerenciado pela SAVE Brasil. A chave é investir no manejo do pasto nativo e habitats associados, e ignorar as empresas que vendem sementes de capins cultivados.

Ali é possível ver a face moderna de uma atividade antiga, onde tecnologia e respeito ao meio ambiente se somam à cultura gaúcha. O resultado é nada menos que primoroso. Como apreciador de um bom bife, alerto que a carne com o selo da Alianza leva a novos níveis de paladar carnívoro e você nunca mais experimentará um bife de nelore padrão Friboi sem achar que é uma ofensa às suas papilas gustativas e dignidade como consumidor.

Este modelo que combina substituição ecológica – imperfeita, é verdade –, conservação e produção também pode ser viável em outros ecossistemas com forte componente campestre, como o Cerrado e o Pantanal.

Na Floresta, dá errado

Infelizmente, os vendedores de braquiária, um capim africano, dominam cada vez mais, assim como a ênfase em produzir carne meia boca a preço de banana. Em 2016 fomos o maior exportador em quantidade, mas o terceiro em valor. Ganhamos US$ 4,3 bilhões, atrás dos USA (US$ 5,2 bilhão) e Austrália (US$ 5,3 bilhão). Somos reis do bife xingling.

Gado e Pampa: uma combinação perfeita. Aceguá, Rio Grande do Sul.
Gado e Pampa: uma combinação perfeita. Aceguá, Rio Grande do Sul.

A pecuária praticada no Brasil é resultado do casamento dos Bos indicus indianos — que chegaram aqui com o zebu em 1813 –, com capins africanos. Essa combinação de espécies rústicas adaptadas a climas quentes, que ganhou corpo com a importação dos Guzerá e Nelore, a partir de 1870, foi excelente para a pecuária, mas fatal para nossa natureza.

Pastagens ocupam quase 20% do país (~170 milhões de ha), mais do que as unidades de conservação. Destes, 60 milhões de hectares são pastagens degradadas. Como no vale do Paraíba e bacia do Rio Doce, onde o fogo que mantém sapezais impede a regeneração das florestas das quais nossa segurança hídrica depende, e no oeste do Maranhão e sul do Pará, que primam pelo seu IDH baixíssimo.

A pecuária tem na sua conta muito da destruição da Mata Atlântica e, principalmente, da Amazônia, da qual já destruímos mais de uma França. O que foi feito queimando muito dinheiro do contribuinte dado por bancos oficiais e fundos constitucionais para que reis do gado cremassem florestas e o BNDES financiasse frigoríficos amigos. Pagamos muito caro pela nossa passagem para o atraso.

Dos seringueiros-vaqueiros do Acre aos grileiros de terras de Novo Progresso. O nome dado à cidade-base dos ladrões de terras do Jamanxim mostra bem como eles pensam. A banda tosca da pecuária pop faz o Brasil rasgar dinheiro.

Tornar o Brasil o maior exportador de carne, soja e os outros produtos que vendemos barato destrói a infraestrutura verde da qual o próprio agronegócio depende. Trocar florestas de alta biomassa por capim plantado para sustentar uma boiada de péssima produtividade (ridículos 0,3 a 1,5 vaca/ha) manda milhões de toneladas de carbono para a atmosfera, apesar das empulhações sobre a pecuária ser solução para a mudança climática. Já vemos o resultado de padrões climáticos alterados, o que ficará muito interessante quando regiões como Goiás, Tocantins e Mato Grosso tiverem suas temperaturas médias elevadas em 5°C antes do final do século.

O avanço do agro também elimina a evapotranspiração das florestas e do Cerrado que cria a bomba biológica que traz a chuva da qual a agropecuária e as cidades do centro e sul do Brasil dependem.

Hereford. Bagé, Rio Grande do Sul.
Hereford. Bagé, Rio Grande do Sul.

Quando vejo uma zona de alta pressão sentada sobre um Brasil esturricado, Brasília no limiar de um desastre hídrico e hidrelétricas-chave com reservatórios zerados, torço para que o país entenda o preço de termos 200 milhões governados por 200 ruralistas com valores do século 16. Um pouco disso está na conta de luz desse mês.

Um dos países que introduziu o gado Heck (e bisões-europeus) em suas reservas naturais é a Holanda, que também tenta recuperar parte da natureza perdida por séculos de agropecuária intensa.

Esse país menor que o estado do Rio de Janeiro, pioneiro no pensamento liberal que nos falta, é o segundo maior exportador agrícola em valor de sua produção (o Brasil é o quinto, atrás da França e Alemanha), usando cada vez menos pesticidas, antibióticos, fertilizantes e outros insumos e com respeito às suas áreas protegidas e civilização.

Será que algum dia nossa ficha cairá?

 

 

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  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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Comentários 9

  1. F.Raeder diz:

    Acho interessante entrar nesses links do texto, e depois entrar nos links dos links pra ver onde vou parar…dessa vez foi num artigo sobre elefantes-anões das ilhas mediterrâneas durante o Pleistoceno !!!
    http://scienceblogs.com/tetrapodzoology/2011/01/1


    1. Fabio diz:

      Aha, vc achou um dos Ovos de Páscoa que planto nos artigos 🙂


  2. Reuber diz:

    Genial meu velho! Vida de gado, em pasto degradado, é o que parece nos aguardar…


  3. Leo Mohr diz:

    Parabéns Fábio, como sempre um texto único que consegue reunir história, economia e conservação como ninguém consegue (de forma decente) no Brasil.


  4. Marina Silva diz:

    Quando os irlandeses tentaram impor barreiras às importações de carne brasileira para a União Europeia alegando que o que vendemos não é boi Bos taurus, é outra coisa Bos indicus, estavam certíssimos.
    Isso sem contar o risco de contaminação e doença, como a Operação Carne Fraca mostrou


  5. Willian Menq diz:

    Excelente texto Fábio Olmos, infelizmente acredito que demorará alguns séculos para "nossa" ficha cair. Uma pena mesmo, vivemos em um país de analfabetos funcionais.


  6. Carolina Lisboa diz:

    Texto fantástico! Parabéns!


  7. umbrios27 diz:

    Primoroso o texto, muito obrigada!


  8. Marc Dourojeanni diz:

    Ayer mismo estaba recordado mi lucha de los años 1970, para evitar que la Dirección General de Ganadería del Perú invadiera con vacas la Pampa del Heath, el único lugar del Perú donde existe un Pantanal miniatura, con lobo guará y ciervo pantanero y todo lo demás. Ganamos la batalla y creamos un Santuario que hoy es parte del Parque Nacional Bahuaja-Sonene. Por eso, por su calidad y por la coincidencia, este magnífico artículo de Fabio me impresionó. Me enseñó muchas cosas que no sabía o en las que no había pensado. Pero también porque mucho de lo que él escribe yo lo escribía -y obviamente yo no era el único- en artículos y libros sobre la Amazonia peruana desde los años 1970. La insensata sustitución de una valiosa floresta por 0,5 vacas flacas por hectárea, cuando ya en esa época se sabía poder criar hasta 8 vacas gordas por hectárea con la tecnología disponible. Los gobiernos y los bancos promoviendo y financiando la estupidez, la conexión de las hamburguesas destruyendo las selvas de América Central, etc., etc. ….. Todo eso ha sido denunciado por miles durante las últimas cinco décadas…. Y nada. Y nada pasará con este nuevo análisis de Fabio, a pesar de su contundencia.
    Pero no importa. Esta nota es magnífica y debe ser leída por todos los que aún piensan un poco o de vez en cuando, antes que el cerebro de los Homo sapiens domesticus que frecuentan estas tierras se reduzca aún más.