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10 livros para mergulhar em Conservação: “A Sand County Almanac”

A obra de Aldo Leopold será tema da nossa primeira coluna sobre livros que toda pessoa interessada em conservação da natureza deveria ler

3 de dezembro de 2019 · 4 anos atrás
  • Fernando Fernandez

    Biólogo, PhD em Ecologia pela Durham University (UK). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, trabalha com Biologia da Conservação.

“A sand county almanac”, em português, “Almanaque de um Condado Arenoso”, não pode faltar na sua biblioteca. Foto: Pixabay.

Era só o que faltava.

Quando surgiu a ideia de escrever uma série de colunas em O Eco sobre livros que toda pessoa interessada em conservação da natureza deveria ler, eu queria começar pela pequena maravilha que é “A Sand County Almanac”. Mas havia um problema. Não queria começar por um livro que não estivesse disponível em português, e por isso poderia não ser tão acessível para muita gente. Apesar de ser amplamente considerado como um dos livros mais icônicos do movimento ambiental (com “Primavera silenciosa”, de Rachel Carson), a obra-prima de Aldo Leopold nunca tinha sido traduzida no Brasil.

Mas agora, logo no momento exato para esta série, descubro que finalmente foi lançado “Almanaque de um Condado Arenoso e Alguns Ensaios sobre Outros Lugares”, pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais. A tradução é do ecólogo Romulo Ribon, professor da Universidade Federal de Viçosa. Na verdade, essa é a segunda tradução do livro para a língua de Camões, pois (sem que eu soubesse) já tinha sido lançado antes em Portugal.

Agora, então, não falta mais nada. “A Sand County Almanac” será o tema da primeira das nossas conversas, caro(a) leitor(a). Por conveniência, continuarei me referindo ao livro pelo seu título original, porque é assim que é chamado dentro do movimento ambientalista, e portanto como estou habituado a pensar nele (na verdade,  o título completo é “A Sand County Almanac, with Sketches Here and There”).

Um livro póstumo

Por uma triste ironia, Aldo Leopold nunca pode ver o sucesso de seu pequeno livro, que se tornaria “cult” e influenciou toda uma geração de ambientalistas. “A Sand County Almanac” foi publicado postumamente em 1949; Leopold tinha falecido no ano anterior. Aos 62 anos, ele teve um ataque cardíaco enquanto tentava combater um incêndio florestal. Morreu defendendo aquilo que mais amava, a floresta, a natureza.

Depois da morte de Aldo, seu segundo filho, Luna, foi quem reuniu os textos e publicou o livro. Mas não foi uma ideia de Luna; quando faleceu, Aldo já estava editando seus ensaios para publicá-los juntos, e Luna apenas realizou o sonho do pai.

Edição de 1949. Editora: Oxford University Press. Imagem: Wikipédia.

Aldo Leopold não era nenhum anônimo quando escreveu “A Sand County Almanac”; longe disso. Como chefe do serviço florestal, um dos criadores da disciplina de manejo da vida silvestre e um dos primeiros defensores da conservação da natureza nos EUA (após Henry Thoreau e John Muir), ele era uma figura pública bem conhecida. Mesmo assim, ninguém poderia antecipar o impacto que o livro teria – com duas décadas de atraso. Quando saiu, seu sucesso foi modesto, como talvez fosse esperado. Mas com o crescimento explosivo do movimento ambientalista nas décadas de 1960 e 1970, impulsionado por “Primavera Silenciosa” (de 1962), subitamente “A Sand County Almanac” foi redescoberto e vendeu mais de dois milhões de exemplares nas décadas seguintes. Foi por essa popularidade que um dia ouvi falar dele, mas quando isso aconteceu, não me interessei em lê-lo por causa do título, que parecia meio árido e vago. Por que eu iria querer saber de um condado arenoso? Só fui finalmente lê-lo vários anos depois. O que eu posso te dizer é: não repita o meu erro. O quanto eu estava perdendo e não sabia!

Um drama ambiental contado por uma árvore

Na verdade, são dois livros em um. A primeira metade, em pequenas crônicas, fala das mudanças na natureza ao longo de um ano, vistas a partir de uma fazenda degradada que Leopold comprou em Wisconsin, com o solo devastado por décadas de mau manejo. Ele morou lá com sua família por décadas, e vê a natureza a seu redor com o agudo olhar daquela espécie ameaçada, o naturalista que conhece cada planta ou animal e consegue olhar em volta e perceber como uma floresta funciona (ou não mais funciona). O ritmo de um livro daquela época é mais lento do que estamos acostumados, e há muitos nomes de animais e plantas que nos são pouco familiares, mas coragem, insista, garimpe, as joias já estão lá para ser descobertas.

”Toda a história da região está ali, como que vista pelo carvalho.”

Uma delas, sem dúvida, é “Bom carvalho”, do mês de fevereiro. O ponto de partida dificilmente poderia parecer mais insignificante: Leopold conta o corte de um imenso carvalho que havia sido morto por um raio em 1945 e, a contragosto, teve que ser serrado pela equipe da fazenda. Pelos anéis de crescimento no tronco,  Leopold estima que a árvore teria oitenta anos de idade, ou seja, devia ter começado a crescer em 1865. À medida que a serra avança no tronco de fora para dentro, Leopold vai descrevendo, do mais recente ao mais antigo, as mudanças ambientais que a árvore presenciou ao longo de toda sua vida. A devastação da fazenda pelos proprietários anteriores, culminando com o dust bowl dos anos trinta; o surgimento das primeiras leis ambientais; as mudanças correspondentes da fauna e da flora à volta. Toda a história da região está ali, como que vista pelo carvalho. Sobre 1908, por exemplo, lê-se: “um ano seco quando as florestas queimaram ferozmente, e Wisconsin se despediu de seu último cougar” (o cougar é o animal que chamamos de onça parda). As mais pungentes são talvez as menções à pomba migratória, Ectopistes migratorius. Em 1872, ele menciona que estimadas 136 milhões (!) de pombas migratórias nidificaram em Wisconsin, e que aquela foi “a última grande nidificação em Wisconsin, ou quase a última em qualquer estado”. A anotação para 1899 é lacônica e irônica: “quando a última pomba migratória colidiu com uma carga de chumbo perto de Babcock, dois condados para o norte”.  A pomba migratória, como se sabe, foi extinta em 1914.  De repente a gente percebe que todo um grandioso drama ambiental está sendo contado ali, do ponto de vista minúsculo de uma árvore, como pura literatura – quase poesia, com o ritmo marcado pelas ordens de “descanso” do líder da equipe; uma poesia triste, mas linda assim mesmo.

Aldo Leopold em viagem pelo Rio Gavilan, México. Foto: Pacific Southwest Region 5/Wikipédia.

A segunda parte, despretensiosamente intitulada “Sketches here and there”, reúne escritos soltos de Leopold. O último ensaio, “A ética da terra”, é de longe o mais influente de todos. Nele, Leopold fala da expansão do círculo de direitos, de forma a incluir cada vez mais grupos dentro da comunidade humana – pessoas de qualquer sexo, raça, idade ou religião – como uma das grandes conquistas da humanidade. Em seguida, propõe candidamente uma gigantesca revolução: “A ética da terra simplesmente alarga as fronteiras da comunidade para incluir solos, águas, plantas e animais, ou coletivamente: a terra.” Por muito tempo estranhei que Leopold incluísse elementos inanimados nessa lista, mas depois fui percebendo quanta sabedoria havia nisso, e como era fantasticamente moderna a sua visão. Numa época em que essa expressão nem sequer havia sido inventada, a visão de Leopold incorpora a ideia de serviços ecossistêmicos. Sem conservar solos e águas, os ecossistemas não poderiam funcionar adequadamente, portanto não faz sentido pensar nos direitos das plantas e dos animais – inclusive nós – sem pensar nisso. Leopold não era cientista, mas respeitava profundamente ciência. Ele bebia das ideias da nascente ciência da ecologia, através de uma longa correspondência com o inglês Charles Elton, um de seus pioneiros.

Na perspectiva da ética da terra, “Uma coisa é correta quando tende a preservar a integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica. Ela é errada quando tende de outra forma.” As consequências dessa mudança de perspectiva são ainda maiores: “A ética da terra muda o papel de Homo sapiens de conquistador da comunidade-terra para mero membro e cidadão dela”. Quem dera hoje a maioria das pessoas tivesse essa iluminada percepção que Leopold já tinha alcançado em 1948.

Pensando como uma montanha

Meu favorito, porém, é outro ensaio dessa parte, “Thinking like a mountain” (“Pensando como uma montanha”). Até hoje me emociono quando falo disso, e agora não é diferente.  Bom, se você não quer um spoiler, pule os próximos dois parágrafos, se conseguir.

”Poeticamente, ele argumenta se nós tivéssemos “vivido” ali por tanto tempo quanto uma montanha, e se conhecêssemos aquele sistema tão bem quanto uma montanha, nós saberíamos que lobos fazem falta.”

Para entender o contexto, uma das principais atividades de manejo de vida silvestre nos EUA naquela época era conhecida pelo eufemismo “controle de predadores”. A fauna era manejada para caça – especialmente de cervídeos – e a lógica da época, que Leopold tinha herdado, era que lobos (e outros predadores) eram pestes que tinham que ser exterminadas, para que houvesse mais caça. Foi com base nisso que os lobos seriam sistematicamente exterminados em todos os 48 estados contíguos dos EUA.

Em “Thinking like a mountain”, Leopold descreve o momento de sua conversão, se posso dizer assim. Ele estava com alguns colegas do Serviço Florestal no topo de um penhasco, quando viram uma loba, seguida por vários filhotes, nadando no rio turbulento que passava embaixo deles. Leopold então escreve, “naquela época nós nunca tínhamos ouvido falar de perder a chance de matar um lobo”. Atiraram todos juntos no grupo indefeso na água, fazendo um massacre. Desceram então para ver o resultado, a tempo de encontrar a fêmea ainda agonizante na margem. Leopold então escreve, “eu vi um profundo fogo verde morrendo em seus olhos”. Nuvem nos olhos? Não só nos seus.

O que Leopold escreve a seguir é uma impressionante mudança de posição em relação à “sabedoria” herdada de que lobo bom era lobo morto. Ele fala da vegetação em áreas sem lobos, encostas inteiras com cada planta ou plântula comestível devorada, até o raquitismo ou a morte, por populações superabundantes de herbívoros que perderam seus reguladores naturais. Leopold percebia que Parques Nacionais espetaculares estavam se tornando ecossistemas desequilibrados e empobrecidos, pela falta de seus predadores de topo. Poeticamente, ele argumenta se nós tivéssemos “vivido” ali por tanto tempo quanto uma montanha, e se conhecêssemos aquele sistema tão bem quanto uma montanha, nós saberíamos que lobos fazem falta.

Literatura numa hora dessas?

Lobo em Yellowstone. Foto: Skeeze/Pixabay.

É maravilhoso poder ler essas palavras agora, setenta anos depois, e ver como elas não caíram no vazio. Como é bem conhecido, a reintrodução de lobos no Parque Nacional de Yellowstone em 1995 é uma das maiores histórias de sucesso da conservação. O retorno dos lobos restabeleceu a regulação da população dos veados, impedindo sua superabundância. Isso, por sua vez, permitiu que a vegetação das encostas e das margens dos rios se recuperasse, por sua vez permitindo recuperar uma diversidade muito maior de animais. Os efeitos em cascata permitiram até recuperar a dinâmica dos rios; o sucesso foi tão espantoso que o vídeo “How wolves change rivers”, contando essa história, foi visto por mais de quarenta milhões de pessoas nos cinco primeiros anos após seu lançamento. Hoje parece que os lobos podem não ter sido os únicos responsáveis por tudo isso; por exemplo, o retorno independente dos castores a Yellowstone pode também ter contribuído para recuperar os rios. Mas não há dúvida de que os lobos tiveram um papel central.

Acho que a maior parte daquelas quarenta milhões de pessoas nunca ouviu falar de Aldo Leopold. Mas ele cantou a pedra, predisse exatamente o que aconteceria, setenta anos antes. Mais que isso, durante décadas, aquele pequenino e belíssimo texto com um título esdrúxulo, “Pensando como uma montanha”, foi uma das maiores fontes de inspiração daqueles que lutaram contra mil obstáculos até conseguir reintroduzir os lobos em Yellowstone.

“A Sand County Almanac” é literatura pura, e você pode agora estar se perguntando, “literatura numa hora dessas?” Sim, mais que nunca. Literatura ilumina, inspira, muda perspectivas, muda o mundo. Talvez mais que em qualquer outro momento, precisamos de tudo isso. Acredite-me, é um pequeno livro que vale muito a pena ler.

As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.

 

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Comentários 9

  1. Carlos diz:

    Aqui no Brasil temos um livro muito bom "Sustentabilidade. Direito ao Futuro" de Juarez Freitas.


  2. Sousa santos diz:

  3. F.Raeder diz:

    Bem…se a lista dos Top 10 do colunista ainda não está fechada, fica como sugestão (meio óbvia!) o "Diversidade da Vida", de E. Wilson.

    E muito boa a ideia de começar com Aldo Leopold, realmente pouco conhecido no Brasil.


  4. Miriam Leite diz:

    Que bela ideia essa de os livros essenciais recomendados por você! Serão todos lidos e divulgados! Nós do interior agradecemos!


  5. Eugênio Gadelha diz:

    Será uma referência para nossa biblioteca na RPPN Sítio Lagoa, Guaramiranga, Ceará. A percepção e o sentimento de quem conviveu ( e viveu) com a natureza, deixando seu testemunho importante
    e precioso às causas da conservação das florestas em toda a sua biodiversidade.


  6. Carolina diz:

    Melhor pessoa, melhores dicas! Incrível.


  7. Emanuelle diz:

    Uau, minha professora de biogegrafia sempre fala de você Fernando Fernandez, que texto inspirador, quero muito ler esse livro


  8. Caroline Castro diz:

    Fernandez, inspirador!
    Que tal você falar num próximo texto sobre as histórias de sucesso de conservação no Brasil. Temos algumas hem!
    Seguimos


  9. Paulo diz:

    Fernandez, ao resgate.

    Muito bom.