Análises

Covid-19, um ano depois: o transbordamento continua

Após mais de um ano de pandemia, sentimos mais uma vez o terrível custo da Covid-19: não apenas em vidas, que é irremediável, mas também em dinheiro

Marina Aizen ·
6 de junho de 2021 · 3 anos atrás

Especialistas calculam que prevenir futuros desastres como o causado por este vírus de origem zoonótica é cem vezes mais barato do que insistir no modelo atual baseado na destruição da natureza, que está por trás do surgimento de patógenos com a capacidade de se globalizar. Há cerca de 1,7 milhões de germes coexistindo com mamíferos e aves ao redor do mundo. E uma grande maioria deles pode nos infectar se entrarmos em contato com as espécies que os transportam na natureza.

Não há mais lugares que sejam suficientemente remotos porque todos estamos conectados pelo comércio e pelo trânsito humano. Portanto, se o Brasil, Paraguai ou Argentina destruírem suas florestas, ou se a China avançar com seus planos de urbanização em áreas selvagens, não é apenas uma questão interna de soberania de cada um desses países. Os vírus viajam: podemos ver isso. A divisão das nacionalidades é uma mera categoria humana. Estamos biologicamente unidos, da mesma forma que estamos contidos dentro de um único planeta, com uma atmosfera. Ninguém é poupado.

A situação mundial é mais crítica do que se supõe, porque já transgredimos todas as fronteiras planetárias e não temos muito mais lugares para continuar expandindo. De acordo com o relatório de 2019 da plataforma IPBES, o órgão científico que estuda o estado da biodiversidade global, 75% da superfície da Terra já foi transformada. O paradoxo é que dizimamos a vida com toda sua complexa história evolutiva para produzir um punhado de animais cuja criação dominamos e para plantar um par de espécies vegetais que mal podemos contar com os dedos de nossa mão.

“Comoditização” da natureza

Um bom exemplo disso pode ser visto na Argentina, especialmente no Gran Chaco Americano, o segundo maior e mais biodiverso sistema florestal da América Latina, depois da Amazônia, um mundo rico em árvores e animais únicos, uma manta de retalhos de culturas ancestrais. Perdemos mais de 8 milhões de hectares deste belo ecossistema, de onde vem o quebracho e a carreta de tatú, em apenas três décadas. E para quê? Para vender soja com agroquímicos que, convertidos em farinha, serão exportados por via aquática para alimentar fazendas espalhadas pela Europa, desde salmões e galinhas até vacas e porcos. Vale a pena trocar tamanduás por linguiças, para que o Estado possa cobrar impostos retidos na fonte? Mesmo à custa de possíveis doenças e mais mortes?

Este processo de “comoditização” da natureza está sendo reproduzido em uma escala global. E é por isso que existem tantas brechas em matéria de saúde.

Antes do Covid-19, tínhamos visto outros vírus viajarem de barco ou avião, que circulavam pelo globo às vezes de forma difícil de entender.

Um exemplo disso aconteceu em 2016, quando o mundo ficou chocado com imagens do Brasil de bebês nascidos com crânios deformados, uma patologia causada por uma doença até então desconhecida: Zika. Antes de receber o nome do vírus, Zika era apenas uma selva ugandesa, muito densa 50 anos atrás. Entretanto, foi sendo gradualmente desmatada e a floresta, outrora densa e exuberante, foi devastada pela agricultura. O subproduto foi o surgimento de um patógeno que chegou à América Latina via China. Portanto, o vetor do germe não era apenas o mosquito, mas também o comércio.

Pandemias piores no futuro

Infográfico em espanhol.

Os cientistas advertem que a próxima pandemia pode ser ainda mais grave porque sistemas tropicais complexos estão sendo desmantelados para plantar soja, café, cacau, açúcar, óleo de palma ou pasto. Essas culturas produzirão muitos alimentos baratos e ruins para a nossa saúde, e ainda por cima nos daremos o luxo de jogar fora: 30% vão para a lata de lixo. Isso é desenvolvimento?

“O desmatamento desenfreado, a expansão descontrolada da agricultura, a criação intensiva de animais, o desenvolvimento da infraestrutura, bem como a exploração de animais silvestres criaram uma tempestade perfeita para surtos de doenças”, concluiu um grupo de cientistas internacionais, incluindo Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, uma organização que estuda o surgimento de doenças. “É provável que as futuras pandemias aconteçam com mais frequência, se espalhem mais rapidamente, tenham maior impacto econômico e matem mais pessoas se não tivermos cuidado suficiente com as escolhas que fazemos”.

No processo de comer o mundo, nós não apenas eliminamos animais incríveis, como orangotangos e onças pintadas. Também está acontecendo algo que vemos claramente em muitos países da América Latina: os ricos estão ficando mais ricos e os pobres estão ficando mais pobres. O ouro que supostamente nos salvaria nunca brilha. Este é um sistema que transmite doenças e reproduz injustiças.

Não é culpa do morcego

A origem exata do vírus que causa o Covid-19 ainda não foi determinada, embora provavelmente tenha vindo de um morcego em uma floresta na Ásia. Os sistemas imunológicos dos morcegos permitem que eles coexistam lado a lado com uma grande carga viral enquanto estão amontoados em espaços fechados como cavernas, trocando fluidos corporais o tempo todo. Como todas as espécies na Terra, elas desempenham uma função essencial nos ecossistemas, como a polinização, sem a qual não teríamos alimento. O problema é quando entramos em contato com eles, seja abrindo estradas ou montando fazendas de animais.

“As infecções virais sempre foram parte da natureza, mas esta pandemia foi criada por nós, ou melhor, por nosso modelo de apropriação da natureza. Estamos avançando para ecossistemas onde nunca antes houve contato próximo e frequente entre pessoas e animais selvagens. Estamos fazendo isso, por exemplo, desmatando, abrindo estradas através de florestas, selvas e brejos, e estabelecendo populações humanas, geralmente em condições precárias, nas fronteiras florestais e mineradoras”, diz uma carta assinada por pesquisadores da Universidade Nacional de Córdoba, da Argentina, chefiada pela prestigiosa ecologista Sandra Díaz.

E acrescenta: “Ali os animais selvagens entram em contato com animais domésticos e pessoas, todos em condições altamente vulneráveis, muitas vezes imunossuprimidos. Nessas condições, é muito fácil para um vírus sofrer mutações e invadir novas espécies, sejam outros animais selvagens em cativeiro, animais domésticos ou pessoas. O resto é feito pela globalização do trânsito de bens e pessoas, a persistência de bolsões de pobreza, superlotação e vulnerabilidade em muitas regiões não próximas à fonte original do vírus, como em nosso país”.

Uma saúde

A pandemia de Covid-19 abriu o debate sobre a necessidade de focalizar nossas economias sob o preceito de “uma saúde” e assim derrubar o paradigma do desenvolvimento versus natureza. Parte dessa discussão movimentou o amperímetro internacional. Foi perceptível o surgimento de compromissos ainda alarmantemente fracos para reduzir as emissões de gases que causam a mudança climática. Ela, aliás, é outro disseminador de doenças terríveis. São novas fontes de doenças em um mundo com um aumento de temperatura de 3°C em relação à era pré-industrial — cenário para onde estamos marchando com firmeza e certeza.

Na América Latina, onde há cientistas de estatura internacional que alertam sobre os perigos de destruir a natureza, em linha com o que diz a ativista sueca Greta Thunberg, ainda estamos longe de entender as dimensões que o capitalismo desregulamentado e angustiado infligiu em nossas vidas. Vemos isso todos os dias na agenda política: mais mineração, mais agricultura, mais desmatamento e mais combustíveis fósseis com subsídios estatais vergonhosos. Uma maneira explícita de continuar no caminho da autodestruição e com mais vírus. Ou mudamos a mentalidade ou os vírus mutantes nos levarão embora.

A ideologia de que a natureza deve ser sacrificada em nome do desenvolvimento está tão enraizada que foi até incorporada à linguagem cotidiana. Falamos de “recursos naturais”, como se nós humanos fôssemos algo diferente do mundo ao nosso redor, e a natureza uma mercadoria que só serve para o comércio e o lucro. Aqueles que se opõem a esta narrativa, que para os povos indígenas é um sacrilégio, serão rotulados de “ambientalistas burros”, mesmo que o custo de devastar ecossistemas esteja nos mordendo em nossa própria carne.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Marina Aizen

    Jornalista. Autora dos livros Contaminados, uma imersão na sujeira do Riachuelo e Trumplandia. Ex-correspondente nas Nações Unidas e em Nova York. Premiada com o Inter Press Service (IPS)-Ambev Water Prize, Príncipe Albert II de Mônaco e UNCA. Co-fundadora da organização argentina Periodistas por el Planeta (PxP).

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